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O hospital dos anjos: Carta aberta ao governador João Dória Jr

Carta aberta do jornalista Ricardo Feltrin ao governador João Dória Jr.

Caríssimo governador João Dória Jr.

Em primeiro lugar me desculpo por enviar uma carta aberta ao senhor.

É a primeira que faço isso na vida e a primeira vez que me dirijo a um político não como jornalista inquisidor, mas como cidadão.

Em segundo lugar quero agradecer a atenção e o carinho com que o senhor torceu pela cura de minha mãe, e a discrição com que transmitiu seus pesares quando ela partiu.

Muito obrigado ao senhor e a sua sempre amável assessoria.

Em terceiro lugar quero ser sincero e dizer que não sou seu eleitor e nunca serei.

Não porque tenha nada contra o senhor, seu trabalho ou sua história como político.

E sim porque aprendi com meu querido e saudoso professor de Jornalismo, Otavio Frias Filho (1957-2018), que um repórter deve ser radicalmente isento e apartidário.

Decidi anular meus votos a partir de 1991, quando entrei no jornalismo do Grupo Folha.

Entendo e respeito quem se engaja em partidos e vota em políticos. Espero que respeitem minha posição. Mas, pra dizer a verdade, estou pouco me lixando para quem discordar.

A carta em si

Hoje, governador, completam-se duas semanas desde que dona Anna, que foi professora de francês (!) e português da rede estadual de ensino por mais de 25 anos, faleceu no Hospital do Servidor Público Estadual (Iamspe).

Ela lutou por exatos 52 dias.

Mas, o objetivo desta carta não é falar dela, e sim do hospital onde ela passou seus últimos momentos. Já falei da dona Anna em outro texto em março, quando ela ainda estava entre nós (talvez prevendo que a perderia em breve).

Hoje estou aqui para falar com o senhor sobre esse hospital, que acaba de completar 58 anos

Apesar de sua função fundamental para o funcionalismo estadual –e para a sociedade–, ele é uma das entidades mais injustiçadas que já conheci.

Seus 2.000 funcionários têm sido menosprezados, ignorados, maltratados, mal pagos e até mesmo ofendidos pelos seus antecessores no Palácio dos Bandeirantes.

É um hospital mal falado pelas pessoas, pela população. Mais injustiça, impossível.

Um Hospital na UTI

Como todo hospital público, ele não se banca, é óbvio.

Precisa de grandes injeções anuais de dinheiro público.

Mas, afinal, esse é seu nome, não é ? “Hospital público”.

Ainda assim, de cerca de R$ 1,5 bilhão de seu orçamento anual, o Iamspe (como é conhecido) ainda consegue se “auto-bancar” com os servidores em cerca de R$ 1,1 bi.

Para um gigante multidisciplinar, que atende a dezenas de milhares de pessoas todos os anos em todas as modalidades da medicina, convenhamos: é pouco.

Fisicamente e em seu mobiliário, o Iamspe é muito feio e cheio de problemas.

Está instalado em um complexo de prédios “encardido”; bonito até, arquitetonicamente, mas que nunca ganhou reformas.

Visivelmente está precisando de cuidados urgentes.

Tem muitos problemas estruturais e de manutenção também.

Boa parte dos móveis e equipamentos é ultrapassada, quando não em pandarecos.

Há móveis e equipamentos médicos quebrados por toda parte.

Boa parte dos leitos dos pacientes deve ser provavelmente dos anos 90. Eles estão em péssimo estado.

Isso sem falar nas poltronas reservadas a acompanhantes, que são mortais para qualquer coluna vertebral.

Ainda mais para pessoas como eu, que passaram semanas “morando” nelas.

Não conheço o superintendente do Iamspe, dr Wilson Pollara, mas imagino que ele tenha consciência de tudo isso e saiba a “bucha” que tem nas mãos.

A começar pelo “gargalo” de seu pronto-socorro.

Veja, governador: minha mãe deu entrada no hospital em estado já delicado no dia 20 de maio por volta das 16h.

Só foi internada às 2h do dia seguinte (24 horas depois estava entubada e na UTI, onde foi salva).

Pelos casos que conheci, diria que ela teve sorte e foi abençoada: alguns pacientes chegam a passar 24 horas aguardando um desfecho para seus casos no PS.

Ainda assim, veja só, o hospital operou um milagre em plena pandemia de coronavírus: quase 90% dos idosos com mais de 80 anos infectados com Covid-19 TIVERAM ALTA (minha própria mãe venceu o vírus lá dentro!)

O motivo disso explico agora.

Um Hospital de Anjos

Apesar de todos os seus problemas, o Hospital do Servidor Público Estadual de SP abriga dentro de si um tesouro inestimável.

É sua equipe, seus funcionários, seu corpo médico e de enfermagem.

Do PS ao necrotério –e infelizmente percorri a rota inteira–, posso garantir ao senhor: nunca encontrei uma “empresa” com tantos problemas e ao mesmo tempo com os funcionários tão amáveis, atenciosos, pacientes e abnegados.

Com pacientes e familiares, vale acrescentar.

Mais incrível e admirável são as equipes de enfermagem do Iasmpe.

São pessoas que ganham pouco e amam seu trabalho ao ponto de morar no hospital.

Não estou exagerando ou sendo metafórico.

O senhor sabia que há enfermeiras e auxiliares de enfermagem que se revezam e estão morando literalmente no hospital nos últimos meses?

Essas pessoas não têm coragem de voltar para casa por causa do risco de infectar suas famílias.

Preferem a saudade e o risco à própria saúde do que ameaçar filhos, maridos, esposas, pais e mães.

Elas trabalham, se alimentam, tomam banho e dormem no Iamspe por dias e semanas a fio.

O senhor sabia que só na geriatria ao menos 12 enfermeiras e enfermeiros contraíram a Covid-19 e que uma morreu?

O senhor sabia que nenhum medicamento é aplicado pela enfermagem sem que antes elas acordem os (as) pacientes e expliquem que vão ter algum tipo de incômodo, por receber uma picadinha ou um remédio amargo?

O senhor sabia que as fisioterapeutas entram nos quartos todas as manhãs fazendo “bagunça”, cantando e brincando com pacientes e familiares, com o único objetivo de levar conforto e um pouco de alegria a quem está sofrendo –muitos já desenganados?

O senhor sabia que algumas médicas se afeiçoam tanto aos pacientes que, mesmo depois de deixarem o caso, continuam checando seus prontuários remotamente e visitando-os em seus leitos, para lhes levar… amor?

O senhor sabia que para cada paciente internado no setor de Covid, médicos ligam para as famílias, uma ou mais vezes por dia, para fazer um “relatório detalhado” sobre sua situação?

E que, independentemente de quem seja esse médico, e mesmo que ele esteja vendo aquele paciente pela primeira vez, ele tem conhecimento total do estado e do diagnóstico?

O senhor sabia que a despeito desse incansável e nobre trabalho, alguns políticos e empresários canalhas fizeram pressão para demitir essas pessoas e “terceirizar” a enfermagem do hospital?

Um dia perguntei um dia a uma enfermeira, depois de ouvir tantas histórias de descaso e sofrimento:

“Vocês nunca fizeram greve?”

Ela me olhou quase que horrorizada:

“Nãããão! Não podemos fazer greve!! Já fizemos protestos, mas greve? E os pacientes?? O que seria deles??”

Eu vi e ouvi tudo isso, governador João Dória Jr.

Nos quatro andares e incontáveis quartos e setores em que minha mãe esteve internada vi essa atenção e carinho. Não só com ela, mas com todos os pacientes. Vinte e quatro horas por dia.

Infelizmente, os problemas estruturais, que eu citei ao senhor antes, se espalham como uma doença por todos os setores. Da mesma forma que a abnegação e carinho das equipes.

Deixe-me citar alguns desses problemas mais básicos:

O senhor sabia que as mais de 1.000 refeições dos pacientes –contando café e lanchinhos– são preparadas individualmente, caso a caso, ingrediente por ingrediente, e que apenas recentemente os pratos passaram a vir etiquetados por impressora?

Parece pouco, mas até pouco tempo atrás cada etiqueta era escrita À MÃO.

O senhor sabia que as médicas andam para cima e para baixo carregando chumaços de folhas de papel amassados, nas quais anotam e rabiscam o dia a dia e a evolução –ou involução– do quadro de cada um dos pacientes?

O senhor sabia que isso ocorre também com o processo ligado a liberação e uso de medicamentos?

É tudo na “raça”, na folha de sulfite e na caneta, o que abre brechas para descontrole, desperdício, erros e quem sabe até uso irregular ou desvio.

Tudo isso porque a prosaica informatização e as boas condições de trabalho passaram longe do Iamspe, caro governador.

O senhor sabia que o salário-base de um auxiliar ou técnico de enfermagem do Iamspe é de irrisórios R$ 400, quando o salário mínimo no Brasil é de R$ 1.045?

O senhor sabia que muitos desses profissionais chegam a fazer dois plantões de 24 horas em apenas uma semana, por falta de braços e necessidade de fazer horas extras para que tenham como sobreviver, bem como suas famílias?

O senhor sabia que esses “anjos” deveriam ter direito a um “bônus” este ano devido ao incansável e quase suicida trabalho que se dispõem a fazer, e que até mesmo esse “prêmio” de consolação foi vetado?

Ninguém liga para o Hospital do Servidor Público Estadual, essa é a verdade. É como uma flor de lótus no meio da lama.

Hospital do Servidor Público Estadual (foto: Governo de SP)

O panda e o anjo

Eu poderia passar horas aqui listando todos os problemas e injustiças que vi o Estado cometer contra esses “sacerdotes”, governador João Dória.

Mas, não quero e nem preciso me estender muito mais.

Um dia antes de a minha mãe partir, eu saí para tomar café e voltava para o quarto dela, de manhãzinha. Devia ser umas 6 e pouco.

Eu já não tinha esperanças mais que ela melhorasse. Eu estava com olheiras tão fundas que parecia um panda.

Entrei no elevador e comigo entrou um médico, cirurgião, que provavelmente tinha passado a madrugada na sala de operações.

Sua aparência era bem mais acabada e deplorável que a minha. Estava visivelmente destroçado de cansaço.

Mesmo assim ele me olhou e perguntou:

“Já vi o senhor por aqui esses dias. O senhor tem um familiar aqui? Está com problema sério? Posso ajudar?”

Não consegui responder, governador.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Ele percebeu que, fosse quem fosse que eu acompanhava, já não havia mais esperanças.

Fofo, ainda assim me deu um tapinha no ombro e disse:

“Força, estamos aqui para o que vocês precisarem.”

Quando saí do elevador e a porta se fechou, desabei.

Chorei de soluçar naquele corredor.

E não foi de tristeza, sabe, mas de agradecimento.

Chorei pela certeza de que minha mãe não podia ter sido mais bem cuidada, e ter um lugar mais amoroso e cheio de anjos para partir desta Terra.

Porque aquele médico era a “cara” do Hospital do Servidor Público Estadual: acabado, em pedaços, cansado, maltratado e ainda assim tinha forças para oferecer um gesto de cuidado e carinho a um estranho.

Um grande amigo, filho de médico, me disse outro dia que ficava encantado desde criança com hospitais porque eram lugares de grandes correntes de amor.

Concordo, porque vi e senti isso.

Hospital é um lugar que só tem dois tipos de “correntes”, e ambas ligadas indissoluvelmente ao amor: a do sofrimento e a da bondade. O mal não consegue entrar ali.

Por favor, governador: olhe para o Hospital do Servidor Público Estadual.

Eu sei que o senhor não tem culpa alguma da situação em que ele chegou.

Mas seu partido e seus antecessores têm. E MUITA culpa.

Peço como cidadão que faça um gesto e inverta a lógica: como homem, como político, faça um milagre e abençoe esses “anjos”.

Ajude-os a fazer o inacreditável e incansável trabalho sacerdotal que se propuseram. E eles têm feito a cada dia. Com ou sem pandemia.

Se fizer isso, o senhor nunca será esquecido, nem por São Paulo, nem pela história e nem pelos céus.

Muito obrigado por sua atenção.

Ricardo Feltrin, 24/07/20, 5h50 (hora em que minha mãe partiu)

Texto: Para minha mãe, para todos vocês