Há 250 anos o menino Ludwig nascia na cidade de Bonn (oeste da Alemanha).
O aniversário é festejado hoje, mas ninguém tem certeza dessa data, na verdade. Hoje, 17 de dezembro, é o dia que sabemos que ele foi batizado (família católica).
É possível que tenha nascido ontem, mas, enfim, a hipocrisia…
A verdade é que o garoto tinha tudo para dar errado.
Nasceu numa família pobre, tinha pais problemáticos, irmãos limitadíssimos e teve uma infância desastrosa. Abraço, afeto e carinho são coisas que provavelmente nunca conheceu.
O avô dele se chamava também Ludwig (Lodewijk). Seu pai se chamava Johann. Os dois eram músicos, e dos bons.
Foi, portanto, natural que ele também virasse músico.
Ao contrário dos dias de hoje, ser um bom instrumentista, maestro ou cantor naquele tempo era uma forma de ter uma vida financeira razoável.
Não opulenta, mas “remediada”.
Lembremos que aquela região específica, que hoje é a Alemanha, era então um amontoado de reinos e principados, ou de pequenos estados independentes.
Havia bastante orquestras, igrejas e principalmente nobres –que quase sempre eram amantes da música.
Ou seja, havia uma demanda por músicos.
Por outro lado, para se destacar mesmo era preciso ser muuuuuito bom nesse ofício, pois a concorrência também era grande.
Meio que todas as famílias –da “classe C” como a de Beethoven para cima– se esforçavam para seus rebentos estudarem algum instrumento.
“Bebê” era fera desde fedelho
Pois o jovem Ludwig van Beethoven era muito “fera” no teclado desde criança: cravo, órgão, piano, pianoforte (um ancestral do piano); não havia nada com teclas que ele não dominasse.
E põe fera nisso.
Por conta própria estudou a fundo a obra de Bach e de outros mestres. Por “estímulo” do pai logo se tornaria expert também em violino e viola.
A mãe de Ludwig se chamava Maria Magdalena Kaverich e era uma cozinheira graduada, mas com péssima saúde.
Johann foi seu segundo marido. com quem teve 7 filhos.
Ela morreu de tuberculose quando o filho mais genial tinha apenas 17 anos.
Pai cachaceiro
Dizem que o pai era um compositor e maestro até que bem talentoso, mas que, quando viu o filho em ação, percebeu imediatamente que ele era um diamante.
E possivelmente um novo sustento para a família.
Para infelicidade do jovem Ludwig, seu pai não só era um bebum descontrolado como também um estúpido no trato pessoal. E quanto mais bebia, pior.
Ensinava por meio dos berros, castigos e eventualmente até da pancada.
Época dos gênios
Outra dificuldade que Beethoven enfrentou desde pequeno foi ser comparado com outra criança tecladista: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Os dois são contemporâneos.
Porém, enquanto Beethoven ainda era um menino aprendiz de música, Mozart já era uma lenda e estava em seu auge artístico (embora ele próprio não soubesse disso e fosse outro infeliz “manguaceiro”).
Mesmo assim, o pai de Beethoven tentou transformar o filho no “novo prodígio” germânico.
Inclusive chega a mentir (para menos) a idade do garoto em algumas apresentações para impressionar ainda mais as plateias e fazê-las lembrar de Mozart.
Diz a lenda que, quando era muito jovem, Beethoven teria feito uma aula com Mozart em Viena. Não é impossível.
E que Mozart achou que aquele moleque era extremamente talentoso, mas tenso e perturbado.
Bom… perturbadinho definitivamente Ludwig era mesmo.
Uma diferença que marcaria a vida de ambos os gênios foi que, enquanto Mozart passou sua curta vida desesperado para ser reconhecido em Viena –a capital da música–, Beethoven já chegou na cidade “causando”.
Mozart era idolatrado em Praga, respeitadíssimo em Berlim, admirado em Londres, aplaudido em praticamente toda a Europa.
MENOS pela elite de Viena.
E era só isso que lhe interessava, pois toda a música girava em torno da capital (nota: ele só conseguiu isso depois de morrer). Mozart não era um esquisito, era mordaz. Não era recluso, era um festeiro.
Já Beethoven era uma celebridade vienense desde sempre.
Seu talento como tecladista, dizem biógrafos, era algo até então jamais visto.
Quando pisou na cidade já era aluno de ninguém menos que o alemão Joseph “O Papa” Haydn (nota: gênio idolatrado pelos britânicos ao ponto de causar ciúmes nos germânicos; é de Haydn o “Hino da Alemanha”).
Logo o rapazola Ludwig já tinha fã-clubes e suas composições encantavam a aristocracia.
Existem muitas lendas a respeito de sua virtuosidade.
Dizem que ele era tão brilhante e genial que, uma vez, foi se apresentar com uma pequena formação em que ele tocaria cravo.
O cravo era novinho em folha. Na verdade ele iria estrear o instrumento na apresentação.
No entanto, quase na hora de tocar percebeu-se que o cravo foi afinado em um tom abaixo do “tradicional”.
A partitura para o cravo e todos os demais instrumentos estavam escritos um tom acima.
Não teve problema: Beethoven colocou a partitura na frente e a transpôs no cravo automaticamente –sem ensaio, de “primeira”– para um tom acima, enquanto o resto dos músicos tocava da maneira prevista.
Escrevendo aqui, no site Ooops, parece que o que Beethoven fez não foi tão difícil.
Mas, sim, foi.
Era sua genialidade e domínio completo da música.
Vienenses, esses “malas”
Mesmo amado, Beethoven se tornaria cada vez menos sociável.
Em vez de respeitar o gênio e lhe dar paz, os vienenses passaram a agir exatamente de forma contrária.
Não porque eram maus, mas porque adoravam gente excêntrica.
E gostavam também de aporrinhá-las, de fazer bullying, de incomodá-las e rir delas.
Beethoven virou uma vítima tanto de crianças como de adultos vienenses pestilentos.
Vocês podem pensar –”mas que gente pentelha!”– e têm toda razão, amigos.
(Para entender mais o comportamento dos moradores sui generis dessa cidade eu sugiro que leiam “Os Vienenses – Esplendor, Decadência e Exílio”, de Paul Hoffmann, ed. José Olympio, 1996).
Ludwig van Beethoven era por um lado venerado. Por outro, tratado como o esquisitão do pedaço.
A surdez e a aparência
Aos 26 anos não bastava apenas a surdez que começava realmente a infernizá-lo. Ainda havia os vizinhos e curiosos.
Com isso tornou-se cada vez mais recluso.
Provavelmente nunca teve relacionamentos amorosos, só paixões platônicas e jamais correspondidas.
Relatos na época indicam que, além da doença auditiva e degenerativa, a maior insegurança que sentia era com a própria aparência.
Pinturas e uma cópia de sua máscara mortuária, expostos em um museu de Viena, indicam que ele nem tinha traços germânicos –estava mais para um mouro.
Isso devia ser outra fonte de bullying por parte dos vienenses.
Não deixa de ser paradoxal e também triste: o gênio que ajudaria a elevar em breve o romantismo ao seu mais alto patamar não poder jamais amar e ser amado .
Ranhetão
Talvez tenha sido essa solidão que o tornou irascível ao ponto de entrar numa guerra judicial pela custódia do sobrinho.
Sobrinho, aliás, que era problemático da cabecinha aos pés.
Embora fosse “ignorante”, muitas vezes Beethoven se arrependia de suas grosserias logo depois.
Como penitência, mandava sempre ao ofendido uma carta pacificadora e um pote de carpas em conserva, produto bem caro.
Obsessão com dinheiro
Beethoven sempre foi obcecado com a possibilidade de voltar à pobreza.
Durante toda a vida ele se preocupou se teria como se manter na velhice.
Segundo biógrafos, muito desse medo era infundado (ele era muito bem de vida), mas até o final foi bastante meticuloso com suas contas.
Além disso alguns parentes também “cresciam o olho” sobre seu patrimônio (inclusive o tal sobrinho-problema).
Acordes e harmonias eternas
Nos anos em que a surdez começa a silenciá-lo, ele compõe coisas impactantes, sombrias e maravilhosas, como a Sétima Sinfonia.
Mas aí ele já tinha um legado imenso entre concertos, sonatas, missas e sinfonias (e ainda faltava a maior de todas, a famosa Nona).
Difícil situar Beethoven em um lugar menor do que o do gênio.
Até o convencido Richard Wagner (1813-1883) admitiu na biografia que fez do colega (no Brasil pela ed. Zahar) que Beethoven era o ápice da expressão musical.
O que ele fez com acordes, com a cadência, com a harmonia; as novidades que introduziu na composição e na orquestração, tudo isso mudaria a música para sempre.
A verdade é que há um antes e um depois de Beethoven.
A influência da religião católica em sua obra ainda é discutida. Certamente acreditava no destino, tinha fé e resignação.
Deve ter sido o que o manteve (quase) com sanidade após o diagnóstico de sua terrível doença.
Misantropo mais amado do mundo
No final da vida ele vai se tornar ainda mais distante de outros seres humanos.
Ao mesmo tempo parecia que se aproximava mais de Deus pela música.
Três anos antes de morrer, em 1824 lança seu último “hit”:
A apoteótica “Nona Sinfonia” era finalmente apresentada no teatro Kärntnertor, após um sem-número de dificuldades.
Ele demorou mais de seis anos para compor essa obra, mas valeu a pena (para ele e principalmente para a humanidade)
Dizem que, entre os muitos problemas enfrentados, estava manter um coral quieto e sem fazer nada no palco por mais de duas horas, e encontrar uma soprano capaz de atingir as notas finais do movimento “Ode à Alegria” (poema de Friedrich Schiller).
A propósito, só a história dessa música já dá um outro texto como este. Quem sabe quando a 9ª completar 200 anos, em 2024?
Quando ela foi apresentada pela primeira vez, embora cheia de problemas devido a falta de ensaios, já causou catarse.
Havia dez anos que ele não aparecia em um palco.
Naquele dia foi convidado e subiu nele. E saiu dali aclamado e aplaudido de pé pela plateia que ele não mais escutava, mas ainda podia ver.
Continuou ranzinza, deprimido e genial até o dia de sua morte.
No dia de seu enterro, em 1827, há relatos de que uma das maiores multidões já vistas em Viena saiu às ruas para honrá-lo (a despeito do tempo chuvoso e frio).
O corpo foi levado primeiro para um povoado próximo a Viena, mas Ludwig van Beethoven hoje está enterrado no Cemitério Central de Viena.
Ele está hoje ladeado pelas tumbas de Johannes Brahms e Franz Schubert.
Tive a honra de visitá-lo em 2011, com minha amiga pianista mineira, brilhante e linda: Barbara Garcia.
A pedido do site Ooops, ela toca um trecho da “Sonata Patética”, do nosso amigo Ludwig.
Notem ao fundo que há um Beethovenzinho de pelúcia: Eu que dei ?
“Ó homens que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos enganais. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo”
(Ludwig van Beethoven, Testamento de Heilingenstadt, 6 de Outubro de 1802).
Livros sugeridos sobre Beethoven:
- “Beethoven” – Richard Wagner (editora Zahar, 100 págs.)
- Ludwig van Beethoven – Cartas, diários, cadernos de conversação, reminiscências de contemporâneos” (ed. Música Veredas 231 págs.)
- “Beethoven: A música, e a Vida” – Lewis Lockwood (ed. Codex, 684 págs.)
- “Beethoven” – Bernard Fauconnier (ed. LP&M, 208 págs.)
- “Beethoven” – Edmund Morris, (ed. Objetiva, 287 págs)
Filmes e séries sugeridos sobre Beethoven
- “O Segredo de Beethoven” (longa, 2006)
- “Minha Amada Imortal” (longa, 1994)
- “Baremboim Sobre Beethoven” (série, 1970)
- “Para Sempre Beethoven” (série da Rádio Cultura)
- “Beethoven é Pop”, canal Arte 1 (documentário). Estreia: 23 de dezembro às 18h; 26 de dezembro às 18h; 28 de dezembro às 19h)