Confesso que nunca fui muito fã do grupo inglês The Who ou de Pete Townshend.
Sim, assisti “Tommy” algumas vezes quando era moleque e viciado em fliperama; também comprei as “bolachas” de “Quadrophenia”, “Who Are You” etc., mas ela nunca foi uma banda do meu coração.
Mais ou menos na época do auge do The Who, como sou tecladista desde criança, eu estava ouvindo loucamente e mais ocupado com Focus, Emerson, Lake & Palmer, Pink Floyd, Rick Wakeman etc. etc.
Por mero hábito de leitor voraz de histórias de músicos, uns quatro ou cinco anos atrás comprei “Pete Townshend – A Autobiografia” (editora Globo Livros). O livro ficou largado na minha prateleira até a semana passada.
Ontem, quando o terminei finalmente, a primeira coisa que pensei foi: “Por que demorei tanto para conhecer a história desse espetacular sujeito?”
THE WHO
Me arrependi também de não ter ouvido The Who muito mais desde a infância.
Townshend, hoje com 73 anos, é mais que um mero roqueiro. É talvez mais ainda que um artista.
Pode ser categorizado na ala dos gênios produtivos que ajudaram a mudar a história da música contemporânea, e não só na harmonia, mas também tecnologicamente.
Muita gente talvez não saiba, mas ele foi o primeiro a empilhar amplificadores Marshall e dar origem à famosa “parede de som”. Ele era amigo de Jim, o criador dos amplificadores, e vivia dando pitacos na construção dos aparelhos.
Seu primeiro bom amplificador, aliás, foi comprado em Londres e o vendedor era ninguém menos que John McLaughlin, uma outra lenda da guitarra e do violão clássicos.
Pete foi ainda pioneiro em gêneros de composições como “Tommy”, e um dos primeiros a compor e a utilizar samplers.
Mais que isso, ainda no início dos anos 90, vislumbrou que a música um dia poderia ser composta por não-músicos por meio de softwares em computadores; e que poderia ser armazenada digitalmente e transmitida por rádio ou linha telefônica.
Visionário é pouco.
A propósito, foi provavelmente uma das primeiras celebridades mundiais a mergulhar de cabeça na internet e ter um blog.
SATANÁS SEMPRE PRESENTE
Sim, ele também carrega nas costas todos os demônios que artistas de sua época costumam ter no lombo.
Sexo, drogas e bebidas em excesso, e até uma injusta investigação de interesse em pornografia infantil.
Pois era exatamente o contrário: Townshend, ele sim, foi uma provável vítima de abuso infantil. E, talvez, justamente por isso, nos primórdios da internet, ficou escandalizado com a profusão de imagens de pedofilia na rede.
Quem acompanhou o surgimento da internet sabe que foi assim no Brasil também. Daí ele se tornou uma espécie de “cruzado” tentando combater esse crime hediondo.
Mas, acabou cometendo um erro, e foi formalmente investigado.
Bem, isso é o de menos importante num livro que conta uma história tão interessante e mágica. A história de um sujeito que mudou, talvez, muito da música contemporânea como a conhecemos.
Vejam abaixo alguns dos melhores e mais curiosos momentos do livro, que ainda está disponível em livrarias ou em sebos.
SEXO
A sexualidade está “nublada” na cabeça de Pete quando criança.
Ele passou anos fazendo terapia porque guarda algum tipo de lembrança de abuso sexual sofrido por uma pessoa da família, mas ele não chega a ser taxativo –embora cite até o nome da pessoa suspeita.
Pete acredita ser bissexual, lembra de ter sido dopado e molestado por um amigo, mas não só não guardou mágoas, como lembra que até gostou da experiência.
No entanto, nas quase 500 páginas de sua autobiografia o que se vê é um, digamos, obcecado heterossexual que se apaixona perdidamente por qualquer mulher bonita que aparecesse em sua frente.
Inclusive mulheres alheias.
Também se meteu na vida sexual de amigos, como o então heroinômano Eric Clapton.
Por exemplo, no dia em que Clapton foi dar em cima da mulher de George Harrison (Patty Boyd), foi Townshend quem ficou distraindo o beatle enquanto Clapton fazia o trabalho sujo.
Em uma cena hilária descrita no livro, o guitarrista do The Who conta como correu atrás de um rabo de saia numa festa privada regada a drogas, e como foi rejeitado porque a garota estava ocupada demais dando uns amassos em outra garota.
Com o ego machucado e frustrado, ele mergulha na piscina da mansão pelado e nada sem parar até emergir com a boca enfiada no meio das pernas de uma “groupie” que o aguardava do outro lado da borda.
ÁLCOOL E DROGAS
Como todo roqueiro dos anos 60/70, Peter Dennis Blandford Townshend se meteu com todo tipo de drogas imagináveis. Orgânicas e inorgânicas.
Curiosamente, ele conta que tinha períodos de intenso uso com abstinências voluntárias.
Um dos pontos mais deprimentes foi quando começou a usar cocaína pura em quantidades homéricas. Ele lembra que negociava a compra da droga em formato e tamanho de bolas de tênis.
Também endoidou com ácido, cogumelos, maconha (por décadas) e outras porcarias.
Para um alcoólatra, tinha um refinado gosto.
Sua bebida preferida sempre foi o conhaque Remy-Martin (R$ 350 a garrafa no Brasil). É, portanto, um raro roqueiro apreciador de conhaque (outro era Ozzy Osbourne)
Chegou a beber uma garrafa e meia por dia (e noite), e relata que muitas vezes dormiu abraçado à garrafa como se ela fosse sua namorada.
DEPRESSÃO, RELIGIÃO E SURDEZ
O músico passou anos envolvido com um grave quadro de depressão, agravada certamente pelo uso compulsivo das substâncias descritas acima.
Quem mais sofreu com a doença provavelmente nem foi ele, mas suas esposas “oficiais”, como Karen Astley (24 anos de casório), e a atual, a pianista Rachel Fuller; sem falar nas filhas e no filho.
Uma das coisas que talvez tenha salvo o músico do suicídio várias vezes foi o misticismo que ele abraçou como sua religião. Townshend é até hoje seguidor dos ensinamentos do guru indiano Meher Baba.
No campo da saúde ainda, um dos efeitos do uso da tal “parede” de amplificadores Marshall foi que o músico acabou se tornando meio surdo.
QUEM É QUEM
Embora de fora muita gente pense que Pete e o vocalista do The Who, Roger Daltrey, eram grandes amigos, o livro deixa claro que isso nunca foi verdade.
Eles no máximo se toleravam e tinham uma forte rivalidade, ainda mais porque era Pete quem compunha praticamente tudo no The Who. Aliás, ele nem aceitava sugestões dos colegas.
No entanto, quando da acusação de pornografia infantil, foi justamente Daltrey um de seus maiores defensores, e Pete deixa claro toda sua gratidão a ele.
Seu melhor amigo, na verdade, era o baixista John Entwistle (1994-2002), com quem começou a tocar desde moleque.
Já o baterista Keith Moon (1946-1978) é quem mais recebe críticas no livro –mas só do ponto de vista humano, jamais musical. Pete o achava um gênio do ritmo.
De modo um tanto hipócrita, pode-se dizer que ele achava que Moon também era um “retardado” em seus excessos com bebidas e mulheres, mas quem não era ali?
De qualquer forma ele meio que antecipou que o baterista iria se matar cedo ou tarde, seja por suicídio ou por excessos.
DINHEIRO
Os integrantes do The Who ficaram milionários e perderam tudo algumas vezes. E não podem culpar ninguém por isso, a não ser a si próprios.
Sempre foram esbanjadores, e jogavam dinheiro pela privada, literalmente.
Townshend conta que jogou quilos e mais quilos de cocaína pura em privadas de hotéis, porque jamais viajava com drogas temendo ser preso.
“Ora, bolas, eu era um milionário (e podia fazer isso)”, se defende.
Em vez de viajar em aviões de carreira (desculpem o trocadilho), o guitarrista tinha a “mania” de fretar jatos para fazer conexões de forma mais rápida.
Isso quando não pagava passagens de Concorde e hotéis 5 estrelas para todos os amigos.
Também costumava usar seus cartões de crédito para presentear todo tipo de pessoas, especialmente mulheres.
Em uma só noite de farra, bêbado, chapado, acabou tendo furtada uma mala com US$ 50 mil, que nunca mais sentiu o cheiro (desculpem o trocadilho de novo).
Mas, ele tinha rivais à altura: numa das vezes em que faturaram uma bolada preta de dinheiro, a primeira coisa que Roger Daltrey fez foi comprar um helicóptero e contratar pilotos particulares 24 horas.
Nesse dia Keith Moon ficou morrendo de inveja e encheu a cara como nunca.
Ah, esses milionários excêntricos.
Livro: Pete Townshend – A Autobiografia
Editora: Globo Livros, 487 páginas.
Avaliação: Excelente ?????