Em cartaz nos cinemas desde a última quinta (22), “Dedo Na Ferida”, de Silvio Tendler, tem grandes qualidades e também enormes defeitos enquanto documentário.
Entre as qualidades estão:
- Toca num assunto raro para o cinema documental nacional, que é a investigação (de parte) do sistema econômico-financeiro que mantém o Brasil em permanentes estados de crise, miséria e/ou beira da ruína;
- Tem, desde o princípio, uma narrativa e uma montagem muito interessantes e atrativas para o público: um cidadão comum de Japeri (município mais miserável do Rio) embarca no trem rumo à zona sul, onde trabalha. O filme dura mais ou menos o mesmo tempo do trajeto diário que esse honesto cidadão faz.
Entre os defeitos estão:
- Perto de outros documentários que tratam de temas semelhantes, como os célebres “The Corporation” e “Trabalho Interno”, entre outros, “Dedo Na Ferida” é uma obra que pode ser considerada rasa;
- Assim como o recente “O Processo”, sobre o impeachment de Dilma Roussef, é 100% parcial: só ouve um tipo específico de pensamento para confirmar suas teses (que, repito, estão corretas). Mas, não tem nenhum pluralismo, se é que podemos usar esse termo.
Não que o filme de Tendler esteja inventando mais uma luciferiana tese conspiratória contra o capital ou sistema financeiro.
Nada disso. Como diz o nome de um famoso festival de documentários nacional, ali “é tudo verdade”.
DEDO NA FERIDA (ALIÁS, FERIDONA)
Segundo o filme exagera, enquanto países do resto do mundo gastam de 7% a 10% da suas economias para pagar/rolar suas dívidas, o Brasil abre mão de uns 47% anuais.
Independentemente do exagero na porcentagem (segundo o professor Samuel Pessoa gastamos 10% anuais da arrecadação na rolagem da dívida) , há aí um absurdo que a gente aprende desde sempre.
O Brasil está paralisado pelo pagamento de juros de suas dívidas. Não sobra dinheiro para quase mais nada, já que boa parte vai para bancos.
O sistema de arrecadação de impostos, em sentido final, não passa de um processo de transferência de dinheiro do nosso bolso para o bolso da banca financeira. Ponto. Seguem-se outras verdades:
As maiores empresas do Brasil são bancos;
Nenhum banco do país (quiçá do mundo) tem prejuízo;
Os bancos não produzem, grosso modo, nada;
A mídia nacional tem uma profusão de “teóricos” que repetem feito papagaios que “ter um sistema financeiro saudável e lucrativo é bom para o país” etc. etc.
Eis o real dedo na ferida. Aliás, uma feridona. Pútrida e pustulenta.
Como o documentário de Tendler deixa claro –corretamente–, sim, o sistema financeiro manda e desmanda no Brasil mais do que em outros países.
Manda muito mais que governos e governantes, pois determina (ou obriga) como estes vão agir. Não há escapatória do chamado “sistema”.
PAROU POR QUÊ?
O problema é que o filme estaciona no acostamento –ou melhor, discurso– a essa altura da estrada, e fica por isso mesmo.
Primeiro lugar, a obra não comenta nada sobre o imenso poder e “conluio” que fundos previdenciários estatais têm com o sistema financeiro.
Muito menos fala sobre causas e efeitos que “exobancos” como o BNDES têm no país.
Tampouco cita ou comenta nada sobre administração política, interesseira e “desviada” de alguns dirigentes de bancos estatais, coisa que vimos demais nos últimos anos.
Também não faz nenhuma autocrítica: não fala NADA sobre a “esquerda” (que é o ponto de vista de 101% dos entrevistados do filme), que passou mais de uma década no poder e manteve o “sistema” exatamente do mesmo jeito que ele sempre foi.
BLABLABLÁ DA ESQUERDA
Menos críveis no filme, porém, são as aparições de alguns “medalhões” esquerdistas como João Pedro Stédile e Luis Nassif, entre outros.
O primeiro falando (mais ou menos em tradução livre) que, no século passado, os pobres ainda tinham como ascender socialmente (como se no século 20 não existissem bancos); ou Nassif basicamente culpando (oh, Senhor!) “a imprensa” por não denunciar o poderio do sistema financeiro. Justo ele.
DISCURSO (QUASE) VAZIO
Em todos esses momentos o documentário cai num “planfletarismo” juvenil e perde bastante credibilidade, assim como ocorreu com “O Processo” (que eu nem perdi meu tempo em fazer alguma crítica aqui no precioso site Ooops).
Claro, o documentário também traz ótimas análises de “esquerda”, como as de Paulo Nogueira Batista Jr., que fala sobre a “financeirização”. Um mecanismo que ampliou o acorrentamento do país com mais intensidade a partir dos anos 80.
Ou ótimas análises sobre o impacto do fim do sistema Bretton-Woods sobre as economias do mundo todo; ou ainda sobre a “compra” da União Europeia por meia dúzia de bancos-famílias nas últimas décadas.
Mas, no fim das contas, faltam as visões do outro lado nesse filme.
Faltam posições de gente equilibrada do lado de lá (sim, essa gente existe) para explicar como e o porquê desse tipo de capitalismo extremado se espalhar pelo mundo assim, e porque ele tem mais poder dentro do Brasil.
CADÊ AS PROPOSTAS
Ou então apresentar especialistas que apontem soluções, caminhos e possibilidades para “tudo que está aí”.
A única coisa que uma entrevistada sugere, de passagem, é criar “regulamentação” para o sistema financeiro/bancos.
Mas, como? O que o diretor do filme e seus entrevistados visionários propõem, afinal?
Vamos barrar décadas de poderio financeiro por meio de leis criadas por esses larápios cafajestes e corruptos –de esquerda, direita e centro– que ocupam cadeiras no Congresso?
Devemos fechar a Bolsa de Valores, que é o grande mercado de “especulação”, segundo o próprio filme?
Decidiremos pelo calote na dívida interna?
Abandonaremos o sistema monetário internacional e criaremos nosso mundinho à parte?
Vamos dar um cargo de diretor de Redação na grande imprensa para o senhor Nassif?
Eu sei, estou sendo cínico. Haha…
Mas, é uma boa forma reagir a esse documentário um tanto preguiçoso, e que exibe ponto de vista tão unilateral.
Como disse no princípio, sim, ele tem qualidades, e só o fato de um diretor brasileiro abordar esse espinhoso tema já é uma delas.
Também é o tipo de obra que, pessoalmente, me interessa e prende muito minha atenção como cinéfilo (e brasileiro).
Isso sem falar no imenso respeito (e gratidão) que todos devemos ter pelo diretor, que é pródigo e brilhante no cinema nacional.
Mas, também, é um filme que peca por sua extrema parcialidade e, em vários momentos, superficialidade.
É isso que faz de “Dedo Na Ferida” –ao contrário de outros filmes citados neste texto– um documentário menor.
Filme: “Dedo Na Ferida” #DedoNaFerida
Onde: Em cartaz nos cinemas
Avaliação: Razoável ?
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Assista ao trailer de Dedo Na Ferida, de Silvio Tendler