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Cinema: “Nada a Perder 2” é mais ficção que biografia

Crítica do filme "Nada a Perder 2", por Ricardo Feltrin, site Ooops

“Nada a Perder 2” é o segundo filme dito “biográfico” sobre o líder religioso Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. Estreou na última quinta, cerca de um ano e meio após a primeira parte da saga.

Antes de falar sobre o filme creio ser preciso falar sobre religião, e em primeira pessoa.

Tenho criação e formação religiosa, e esse é meu tema preferido de leitura e de estudos desde que aprendi a ler.

Na verdade aprendi o alfabeto com notas musicais (aprendi as sílabas dó, ré, mi antes das letras isoladas), mas meu 1º livro de cabeceira foi a Bíblia.

Fui batizado cristão e católico de nascença, mas com seis ou sete anos exigia passar minhas férias de julho numa escolinha de uma Igreja Batista em São Caetano (para desgosto de minha mãe devota).

Ou seja, a despeito da família católica (meio fanática, inclusive) cresci tolerante e com formação ecumênica.

Escrevo tudo isso porque décadas depois eu me tornaria colunista de TV, e o bispo Edir Macedo de Bezerra virou o principal acionista de uma das maiores emissoras de TV do país.

Inevitável ter de cobrir esse assunto e esse personagem brasileiro.

A Igreja Universal está indissoluvelmente envolvida na programação da TV brasileira. E também em muitas polêmicas.

Todas as vezes que escrevi sobre a igreja Universal ou outras linhas evangélicas –e foram muitas– sempre houve dezenas, centenas, até milhares de internautas postando ofensas ou críticas ao trabalho das igrejas, a seus líderes e a seus fiéis.

O comentário mais medíocre e “chavão” que vejo é aquele em que os fiéis da igreja são ofendidos e chamados de “burros”, “manipulados”, de “gado”, de “imbecis” e outros adjetivos ainda piores.

Tudo porque colaboram ou pagam o dízimo.

Bem, quero dizer que não compactuo com esses intolerantes, nem quero me estender nesse assunto aqui, nesta crítica cinematográfica.

Falarei disso em outro texto, um dia, talvez. Mas, lembro apenas que o 5º artigo da Constituição Federal prevê liberdade religiosa.

Mais que isso: o dinheiro de cada um pertence a ele. Não é da minha conta ou da sua o que os outros fazem com seu próprio dinheiro, ganho honesta e suadamente.

Vejo muitos intolerantes atacar evangélicos porque eles dão 10% de seus ganhos à igreja. Ao mesmo tempo, eles gastam até metade dos seus salários em ingressos para um único show.

Bem, mas isso também não é da conta de ninguém, certo?

“Nada a Perder 2”

Em “Nada a Perder (1)” comentei que o filme tinha uma boa estrutura, que os personagens estão bem compostos e que Petrônio Gontijo faz o que um grande ator faz: encarna o papel do interpretado.

Mas também o avaliei como um filme fraco.

Gontijo está excelente, sim, compôs um personagem à altura do desafio e praticamente se “transforma” no bispo Macedo. É isso que revela um grande ator.

“Nada a Perder 2”, cinematograficamente falando, é melhor que o primeiro.

Os enquadramentos, a edição, a montagem estão melhores; a trilha está muito mais comedida que a do 1º, quando chega a irritar tanto pelo volume como pelo estilo excessivamente “chorumelento”.

Ou seja, como cinema, “Nada a Perder 2” é um filme brasileiro, senão ótimo, ao menos razoável.

O personagem central, é impossível negar, tem uma vida extremamente interessante.

Macedo construiu –goste-se dele ou não– um império de fé, e uma doutrina que obviamente tem seus defeitos e merece críticas.

Mas, também tem um brilhante trabalho social junto à população mais carente, e, em especial, junto a desprezada comunidade carcerária.

Eu mesmo sou testemunha do que a Universal é capaz de fazer na vida das pessoas.

Um de meus grandes amigos de adolescência se tornou um viciado em crack. Passou quase 10 anos morando nas ruas, perto do meu trabalho, inclusive, no centro de São Paulo.

Ele perdeu dinheiro. A casa, o carro e o emprego. Perdeu a mulher e os filhos. Perdeu a própria família materna e paterna. Perdeu todos os dentes. A dignidade.

Quem interrompeu esse ciclo macabro foi seu encontro com a Igreja Universal. Ele se transformou.

Está vivo e limpo até hoje –embora tenha deixado a igreja há alguns anos. Mas, foi ela que o levou à cura.

A ficção biográfica

A crítica que faço a “Nada a Perder 2” não é sobre seu formato e estrutura, portanto. É sobre o conteúdo. Sobre distorções, exageros e um descarado vitimismo e proselitismo.

Como disse, a vida de Edir Macedo é –repito, goste-se ou não– algo fantástico, mas os produtores decidiram estender a pregação religiosa ao filme.

E é isso que o derruba: o texto e os diálogos são muito fracos. Soam como ladainha.

Há um personagem no filme que diz a Macedo, à certa altura, que o grande problema na vida dele é estar cercado de bajuladores.

Pois concordo com o personagem. O filme em si é prova disso e não passa de uma extensão da eterna bajulação que o cerca.

Curiosamente, na trilogia de livros biográficos escritos por Douglas Tavolaro, há muito mais distanciamento e precisão jornalística do que nas telas

Claro, é cinema, há liberdades. Mas, as distorções absurdas na história eram desnecessárias. Minha opinião de cinéfilo, claro.

Quase todas as distorções visam “passar pano” nos escândalos e polêmicas (sim, houve muitos) envolvendo a igreja.

A santa

Por exemplo, cerca de um quinto das 2 horas do filme é dedicado única e exclusivamente ao midiático e grotesco caso do chute na Santa, ocorrido em 12 de outubro de 1995.

Nesse dia, madrugada de quinta-feira, o então bispo Sérgio von Helde, da Universal, ofendeu a milhões de católicos e devotos ao chutar a imagem de Nossa Senhora na TV para refutar a idolatria.

No filme, os auxiliares de Macedo se revoltam ainda durante a madrugada com von Helde, quando as cenas vão o ar pela TV Record.

Pela manhã correm avisar Macedo para que se prepare para o pior. Von Helde sofre uma reprimenda homérica, está apavorado.

Bem, a verdade é que não ocorreu nada disso. Eu estava lá.

Eu cobri o caso como jornalista. Os auxiliares de Macedo ficaram quietinhos o dia todo, achando que ninguém tinha visto nada. Aliás, muitos inclusive elogiaram o colega por sua atitude.

Esse clima só mudou por causa da imprensa.

A igreja só teve de se manifestar porque nós, jornalistas, exigimos ouvi-la e dissemos que tínhamos o vídeo (que só conseguimos no final da tarde de maneira –sem trocadilho– “milagrosa”).

O jornalista que flagrou o chute na Santa de madrugada e avisou a seus superiores foi meu colega José Norberto Flesch (hoje editor de Diversão no jornal “Destak”).

Ele é portanto o “pai” de um dos maiores furos jornalísticos do país. Virou até tema de filme.☺️

Insone, Flesch viu a cena de madrugada. Assim que entrou na redação do extinto jornal “Folha da Tarde” veio até mim e disse: “Feltras, você viu o que o bispo da Universal fez essa noite?”

Aquela frase iria virar um tsunami.

Passamos o dia todo atrás das imagens, tentando apurar… conseguimos tudo e nossa equipe deu um furo jornalístico históricos –que se tornaria a manchete da tríade de jornais do Grupo Folha no fatídico dia 13 de outubro.

Do chute ao vitimismo

No filme, porém, o chute nem sequer aparece. Três ou quatro sequências após o chute, a Universal e Macedo já se tornaram vítimas do ódio e do preconceito alheio. São os mocinhos. Quem os critica e ataca são os vilões.

Estão sendo injustiçados. São o lado fraco. Alvos da maldade e barbárie dos intolerantes. Ora, foi só uma “pancadinha” na Santa, não?

A mulher de um dos bispos quase é linchada nas ruas (só por homens).

No longa, pais são expulsos de casa pelas famílias porque seguem a Universal. Amigos rompem amizades. Há depredações em massa no país. Fiéis perseguidos nas ruas.

Pior: a certa altura a sede da igreja está cercada de manifestantes gritando palavras de ordem contra Macedo, mas o bispo ergue a cabeça e passa por entre eles e os olha cara a cara.

X-Men não faria melhor. É muita ficção.

O filme também repete outras “licenças” dramáticas de novelas da Record, ao demonizar os líderes católicos.

Todos são maus, perversos, tramam e conspiram com policiais e políticos contra a Universal. Ela, sim, é sempre a boa. O resto do mundo, é mau.

Se existem católicos que conspiraram contra a Universal? Claro que sim, mas não foram a maioria.

Ao generalizar e jogar na vala dos “malditos” todos os que são de fora da igrej de Macedol, o filme se torna uma caricatura, uma peça publicitária, uma obra da manipulação e de proselitismo.

Isso estraga tudo quase tudo.

Se fosse só isso, tudo bem, mas não: também é uma peça de anti-propaganda contra outras religiões e contra quem não comunga com a mesma fé.

Acima, cinema avisa que sala está quase lotada; abaixo, a realidade de “Nada a Perder 2”

Ficção de público também

As desnecessárias distorções pró-Macedo e pró-Universal, no entanto, não chegam a “matar” o filme. Só que tem outro defeito, esse sim fatal como cinema.

A Record e seguidores de Macedo vivem bradando que “Nada a Perder 1” é o filme mais visto da história do cinema.

Bem, isso não é nem ficção, é mentira mesmo.

O filme pode ter sido o que mais teve ingressos vendidos. Aí, sim. Mas, seu público recorde é uma invenção e todos que amam e cobrem cinema sabem disso.

Pois vai ser a mesma coisa novamente, como mostra a foto acima.

Fui assistir ao filme nesta sexta (16 de agosto de 2019) a sessão das 19h no Espaço Itaú do shopping Bourbon, sala 9.

Como mostra a primeira metade da foto acima, só havia 13 ingressos disponíveis nas máquinas.

Agora olhem a segunda metade da foto: contei apenas 21 pessoas das 114 poltronas disponíveis na sala.

“Nada a Perder 2”, portanto, não se trata só uma ficção dramática vestida de biografia. Como o primeiro, será também uma mentira de público.

Filme: Nada A Perder 2

Onde: Em cartaz nos cinemas

Avaliação: Razoável ?

Conheça o site Ooops, de Ricardo Feltrin

Trailer de “Nada a Perder 2”